terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ETINOMIA DO HOMÔNIMO

Primeiras horas de uma manhã de outubro. A espessa nuvem carregada de orvalho, aos poucos cedia o seu lugar ao sol que timidamente cintilava o raiar do dia. O cheiro de terra molhada inebriava os narizes daqueles que, contrariando o desejo em ficar na cama, se levantavam para mais um dia de labuta. A calça verde desbotada, alinhada a camisa branca com listras cinzas, estavam impecáveis. O mesmo se dizia do sapato preto devidamente encerado na noite anterior, que arrematava aquela vestimenta com o cinto de couro largo e fivela dourada com a inscrição da letra: “A”.

Antonio era o seu nome. Não por acaso, mas porque ele era o oitavo filho homem de uma família, que tradicionalmente empregava este nome neste acontecimento. Tal fato o enchia de orgulho, pois o respeito e admiração de todos os demais integrantes da família, por vezes o envaidecia. Também era natural que alguns o invejavam, mas isso não o abatia. Fazia questão de exibir a inicial em seu cinto como se o mesmo fosse um brasão indicando que aquele era o oitavo filho homem da família Silva.

Antonio da Silva. Quantos homônimos existiam ? Centenas ? Talvez milhares de Antonio da Silva, mas um só era tão especial. Um só com estirpe de Orelans e Bragança. Existia algo naquele Antonio da Silva que chamava a atenção de todos. Sua auto confiança era inabalável. Sua apresentação pessoal era impecável. A barba sempre feita, a camisa sempre muito bem passada e os sapatos lustravam mais que qualquer marchetaria.

Antonio da Silva seguia feliz sua vida. Não se intimidava com os cães que ladravam pelo seu caminho. A serenidade estava sempre estampada em sua face. Carregava sua marmita como se ela fosse o melhor dos banquetes. Caminhava a passos largos, porém fortes, na saída da favela. Finalmente chegara ao asfalto e de repente ouviu-se um barulho estridente, pessoas correndo, gritos de mulheres, choros de criança, latido de cachorro e muita poeira que quase lhe cegaram as vistas. Ouviu outro barulho e de repente se deu conta de que se tratava de disparos de arma de fogo. Não teve tempo para pensar, deu as costas ao asfalto e pôs-se a correr junto àquela multidão afoita rumo ao interior da favela. Péssima idéia.

Na segunda passada, sentiu um forte zumbido em seu ouvido. Suas pernas cambalearam e o levaram ao chão. O tiro fora certeiro. Foi incapaz de reagir àquela situação. Pela primeira vez em sua vida, sentira o seu gosto amargo. Conseguiu olhar para o seu cinto e lembrou que por ele, todos o reconheceriam. Tentou tirá-lo para exibi-lo, mas foi impedido por outro disparo que lhe perfurou o coração. Sentiu um ardor em seu peito e antes que pudesse fechar os seus olhos, uma lágrima escorregou por sua fronte. Ficou imóvel. As vozes ao redor e todo aquele barulho começava a silenciar. Estranhamente não sentiu frio, apenas um silêncio profundo na escuridão daquela manhã primaveril.

Seu cinto se perdeu juntamente com seus pertences no Instituto Médico Legal. Ninguém esteve lá para reconhecê-lo. Na favela não se fez luto. Não houve velório. Nem mesmo um caixão decente. Morreu sem a menor dignidade pela força policial que o confundira com outro Antonio da Silva, um homônimo certamente. Fora enterrado numa vala comum, juntamente com outras centenas de Antonio da Silva.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

NU

Cerrou o lábio inferior,
Meneou a cabeça,
Franziu o cenho,
... salivou

Antecipou o gozo
... engoliu

Furtou o silêncio
... refletiu

Levantou, se lavou, se vestiu,
Sem dizer qualquer palavra se retirou
Nu, ainda que vestido.